Contos de fadas modernos: ingleses se reúnem para contar e ouvir histórias

Mônica Vasconcelos
Da BBC Brasil em Londres


Inspirados em uma ideia que surgiu em Nova York, londrinos vêm organizando eventos onde pessoas sobem ao palco para compartilhar histórias reais com uma plateia ávida.

Há quem tente explicar a nova moda como uma reação à presença excessiva das tecnologias que mediam as interações humanas hoje em dia.

Para os organizadores do evento, no entanto, seu sucesso tem uma explicação simples: ninguém resiste ao poder de uma história bem contada. O ritual, batizado de True Stories Told Live (em tradução livre, Histórias Verdadeiras Contadas ao Vivo), obedece a um conjunto de regras.

As histórias devem ser contadas sem o uso de anotações, ou seja, de cabeça. Não podem ser mais longas do que dez minutos. Têm de ser baseadas em fatos reais. Qualquer um pode contar sua história, basta se inscrever antes. Cinco histórias são contadas em cada evento, que acontece, geralmente, em um pub (o equivalente britânico ao boteco brasileiro).

A terceira história em cada noite geralmente contém música - o que abre espaço para a participação de músicos, cantores ou compositores. Outra característica marcante dessas noites regadas a histórias é o fato de que a plateia não paga um centavo para ouvi-las. Quem quiser ser admitido precisa colocar seu nome em uma lista. Como há mais inscritos do que o espaço é capaz de acomodar, os organizadores fazem uma triagem dos nomes.

A prioridade é dada aos novatos - a ideia é permitir que um número cada vez maior de pessoas conheça o evento.

Desafio e Diversão

Por trás da iniciativa estão algumas figuras conhecidas da mídia e das artes na Grã-Bretanha. Entre elas, o jornalista e apresentador de TV David Hepworth, ex-editor da influente revista de musica Mojo, hoje responsável pela revista The Word.

Hepworth ouviu falar sobre um evento que acontece em Nova York, batizado de The Moth, onde pessoas se reúnem para contar e ouvir histórias. Em entrevista à BBC Brasil, ele falou de suas motivações em trazer o formato para a Inglaterra: curiosidade, o desejo de vencer um desafio. E a fé no poder eterno de uma boa história.

"Fiquei curioso, queria saber se conseguiríamos fazer algo parecido".

Como a entrada é franca, os organizadores não estão ganhando dinheiro. Hepworth explicou que não existe essa intenção.

Nós não pagamos pelo espaço. Se cobrássemos ingresso, o pub ia querer uma porcentagem, o contador ia querer uma porcentagem. Então não cobrar torna as coisas mais simples", explicou. "Fazemos porque podemos e porque é divertido."

Ritual Ancestral

O primeiro evento inglês aconteceu há dois anos. Hoje, a lista de contatos do True Stories Told Live já conta com cerca de dois mil nomes. E além de Londres, cidades britânicas como Brighton, Cambridge, Hebden Bridge e Cardiff também aderiram à novidade.

Hepworth acha que a atração da noite reside em um princípio muito simples. "Histórias são a forma mais poderosa de entretenimento que existe".

"Filmes são histórias, jornais são histórias. E isso não tem nada a ver com seu gosto. Quando você sai para ouvir música, tem de decidir que tipo de música você gosta. Histórias, você pode contar para qualquer pessoa".

"A metáfora que eu uso é a do conto de fadas. Chapeuzinho Vermelho, os Três Ursos - todos seguem a mesma fórmula. Você apresenta um cenário, surge um problema, o problema é resolvido. Geralmente, isso funciona muito bem em dez minutos".

"É algo muito satisfatório para seres humanos. As pessoas gostam desse sentido ordeiro que existe em uma história, no meio do caos em que vivemos".

Resta entender o que o contador da história ganha com a experiência.

"O típico contador faz isso como um teste: 'Será que consigo?'", disse Hepworth. "No final, fica eufórico por ter vencido o desafio".

"Mas também tivemos histórias horrendas, que funcionam como uma espécie de terapia. Algo do tipo: 'Vou dizer isso na frente de um monte de gente'. É um frio na barriga, é como atuar (num palco)".

Uma Noite em Outubro

Em Londres, os eventos são mensais. O mais recente, há duas semanas, aconteceu no pub The Compass, no bairro de Islington.

A sala não era muito grande e estava lotada, com cerca de 80 pessoas. No canto, um bar. O clima era de expectativa e bastante adrenalina. Assim que o primeiro contador subiu ao palco, todos se calaram, hipnotizados.

Entre os contadores da noite estavam o engenheiro Paul Currie, de Christchurch, na Nova Zelândia.

Currie falou de sua experiência durante os terremotos que abalaram sua cidade natal no ano passado.

O cantor e compositor Philip Jeays descreveu uma temporada passada na França durante sua juventude e encerrou seu depoimento com uma canção comovente, inspirada no compositor belga Jacques Brel.

O arquiteto John Knepler subiu ao palco iluminado para falar de sua luta para descobrir o que aconteceu com o tio judeu preso na Áustria durante a Segunda Guerra.

O cantor Richard Jobson, da banda punk The Skids, contou como conseguiu persuadir o roqueiro americano Lou Reed a ceder os direitos autorais da canção Pale Blue Eyes, por uma quantia modesta, para que a música fosse incluída na trilha de um filme autobiográfico dirigido por Jobson.

Bondade Anônima

A roteirista e atriz inglesa Sacha Hall, segunda a contar sua história, fez o que talvez tenha sido o depoimento mais comovente da noite.

Ela falou de um evento ocorrido em um gelado dia de Ano Novo, em Paris, há vinte anos, quando ela ainda era adolescente.

Tendo chegado à cidade acompanhada pelo irmão de 14 anos, paralisado, em uma cadeira de rodas, Hall foi obrigada a procurar assistência de um profissional de saúde pela lista telefônica.

Depois de horas e inúmeros telefonemas, a adolescente finalmente obteve uma resposta afirmativa.

Uma hora mais tarde, uma senhora de cabelos completamente brancos, usando uma bengala, bateu na porta do apartamento.

A mulher prestou o auxílio desejado - fazer a higiene íntima do irmão de Sacha - e saiu sem aceitar pagamento, levando apenas um pote de mel que Sacha trouxera do sul da França.

Hepworth disse que Hall foi sua contadora favorita da noite.

Segundo ele, a história da atriz abordou um tema comum aos eventos: a necessidade de dizer obrigado a um estranho. No caso de Hall, uma mulher cujo nome ela jamais saberá e que hoje, duas décadas mais tarde, provavelmente é morta.

Outros temas comuns às histórias são a morte e experiências que tiram o contador do seu conforto cotidiano, como, por exemplo, crimes. Histórias militares ou histórias vividas por judeus - em geral, os pais dos contadores - também marcam presença. Ou experiências de pessoas que têm profissões extraordinárias.

"Uma das minhas favoritas foi a história de um cirurgião que descreveu como foi operar o cérebro do boxeador britânico Michael Watson".

"Watson tinha sofrido um acidente seríssimo no ringue e o médico descreveu a operação, o barulho das serras, tudo em dez minutos. Achei empolgante."